sábado, 31 de julho de 2010

Curral da morte

para a parada mal parada
na praça mal iluminada
alguns choram os que não chegaram
outros gemem ao chegarem

tentam esquecer o quanto mataram
alguns desejam ali cegarem
pouco ouvem do discurso
proferido pelo político polido

querem esquecer, não lembrar
anseiam desviar o percurso
e proferirem aí o último balido

quarta-feira, 24 de março de 2010

.

Nada de novo
Só a saudade ...
De aqui já não estar

3/11/2000

O que é isto?





Caminho por uma estrada
Não sei onde ela vai dar
Faço tudo e nada
Para a fazer falar

Tem passeio de pedra
E chão de gelo
Não sei se aguento a queda
E lance um apelo

Não tenho coragem
De seguir até ao fim
Paro aqui a viagem
Ou fujo de mim?

Gostava de sentir o chão
Gostava de sentir-te a ti
Tenho medo de segurar a tua mão
Tenho medo que se quebre em mim

1991

Existências

(1)
Carrego o fardo da minha existência
Caminhar torna-se forçado
Tropeço nas ideias
Descanso nas dúvidas fáceis
Para caminhar finjo convicção
Finjo convicção consensual
Par vencer esqueço os sonhos
E já não sei se existo
... fico leve ...

1/11/1998

(2)
Sei obedecer
Sou elemento da Procissão Universal
Sigo o caminho indicado
Ignoro a escuridão
Mesmo quando ela brilha

1/11/1998

terça-feira, 23 de março de 2010

O velho juiz

O velho juiz caminha lentamente pela irregular rua de calçada portuguesa que divide a aldeia em duas partes quase simétricas. O seu passo lento mas firme, leva-o do Centro de Dia, depois do jantar, para a sua casa no fundo da rua. O sol, já na sua inclinação máxima, ruborizado e decidido a desaparecer ainda consegue alimentar uma fraca sombra arrastada do seu corpo torto. A sombra acentua a deformação profissional ganha em milhares de horas debruçado sobre livros de leis e processos volumosos e empoeirados.

O velho juiz cumprimenta as pessoas, que a essa hora, regressam do campo, aproveitando o fim de tarde para rega das hortas. Esses breves encontros causam-lhe todos os dias um sentimento de inutilidade e fraqueza.

Os dias do velho juiz são todos iguais, sai da cama às 7:00, depois da sua higiene pessoal toma o pequeno-almoço e ocupa o resto do tempo que tem até ao meio-dia, hora que se desloca para o Centro de Dia da aldeia para almoçar, a recordar os tempos passados. Sentado no banco do restrito jardim, recapitula a sua vida, a infância, a adolescência, o tempo de estudante universitário, a sua escolha como juiz e agora, a inutilidade de ser velho.

Foi com grande agrado que nessa tarde recebeu dois velhos amigos que o esperam à porta de casa. O velho juiz apressou os seus passos ao avista-los. A expectativa de os amigos estarem ali à sua espera para pedirem conselho jurídico transforma-se rapidamente em ansiedade.

Quando os avistou faltavam poucas dezenas de metros, os últimos metros parecem-lhe quilómetros.

- Boa tarde meus amigos!;
-Boa tarde Senhor Juiz - cumprimentam em uníssono;
- Então, porque esperam? - disse o juiz tentando ocultar a ansiedade;
- Bem, o Carlos e eu estamos com um pequeno problema ...
- Esperem! Vamos entrar. - disse o velho juiz, que acentua mais a sua corcunda enquanto tenta encontrar o buraco da fechadura com a mão esquerda e introduz a chave com a direita. Roda a chave com destreza sincronizando com um pontapé seco na base da porta, contrariando assim o atrito entre esta e o chão.

Abriu a grossa porta de madeira, acendeu a luz.

A luz aparenta ser engolida logo na fonte tornando a sua luminosidade fraca mas homogénea na sala, eliminando qualquer sombra de objectos ou pessoas.

- Meus amigos, é melhor passarmos para a cave. É lá onde guardo os meus livros.

Os dois amigos concordaram. Os três caminham ao longo do corredor, onde se mostram carunchosos os vários diplomas do velho juiz. No fundo e à esquerda do corredor atravessaram uma porta, que é bem mais pequena do que as restantes, e desceram umas escadas.

O velho juiz procurou o interruptor auxiliado pela ténue luz vinda das escadas. A luz da cave, apresenta-se igualmente ténue mas, projecta sombras dos objectos e pessoas.

- Meus amigos façam o favor de sentar. - Estas palavras tiveram um efeito tonificante ...
- Queiram relatar a vossa situação, podes começar tu Carlos.

Os dois amigos relataram a situação e esperaram pela opinião do velho amigo juiz.

O velho juiz foi abastecer-se de um suplemento de glucose para o cérebro, fornecido pelas açucaradas bolachas de chocolate que os netos lhe entregaram na visita do fim-de-semana.

Os dois amigos sentados em duas cadeiras de madeira fitavam pacientemente o velho juiz que se mantinha de pé por de traz de uma bancada onde repousa um livro de leis aberto a um terço do seu amplo volume.

Uma lesma sobe lentamente a bancada marcando-a com um rastro luminoso de ranho. Depois de se alimentar nas migalhas das bolachas de chocolate regressa, na sua lentidão, ao mesmo sítio marcando o regresso com um novo rastro luminoso, aparentemente mais luminoso que o anterior.

Os amigos são pacientes, têm que ser pacientes ... a confiança ajuda.

Mais uma vez a lesma marca a sua presença. Mais uma e outra vez. Muitas vezes até ficar gorda e grande. Os dois amigos ficaram metamorfoseados com a espera esperançada e rapidamente iniciam o rompimento do casulo. Ao se libertarem ostentam os seus corpos felpudos e balofos de mariposas. Depois de esticarem as asas e testarem a sua funcionalidade, levando a uma corrente de ar que agitou o pó existente na cave, precipitaram-se sobre a lesma e sobre o velho juiz, sugando-lhes todos os fluidos.

Satisfeitas, as duas mariposas, tentam alcançar a liberdade. Mas, os seus corpos e enormes asas impedem-lhes de atravessar a pequena porta da cave.

Em pouco tempo morrem de tristeza e à fome, servindo de repasto para outras lesmas.

Fim. 

Ano: 1993